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Tempo e Espaço: Mundo Diablo no Centro Cultural São Paulo

Estar na hora certa, no lugar certo, fazendo a coisa certa, não tem nada a ver com caprichos do acaso. Na primavera de 1996, o Nenhum de Nós comemorava 500 shows e lançava seu sexto disco, desta vez virando a chave das gravadoras tradicionais e se reconectando com o mercado discográfico num enlace com a paulista Velas. Antes de terminar aquele ano, em novembro faríamos o show de lançamento de Mundo Diablo no Auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre. Como o disco saiu em outubro, era preciso alongar a tour nacional para dentro de 1997. E tambem, pela mesma razão, abrir espaços editoriais para o álbum marcando o lançamento justamente onde um artista tem que fazer seu tema de casa. Ou seja, em casa.      

Crítica do show de lançando do Mundo Diablo em Porto Alegre pelo Correio do Povo.

A tour começaria por São Paulo em abril de 1997, então tratei de ganhar tempo antecipando articulações.  Fui no Centro Cultural São Paulo alinhar a temporada de lançamento e outros detalhes da produção. Precisava conjugar duas variáveis: o momento certo com o local ideal. A impressão visual de quem chega pelo metrô na Estação Vergueiro é de que o lugar é gigantesco, porém baixo, considerando a cobertura principal.  Mas ao entrar pelo acesso central, a sensação mágica do projeto arquitetônico salta aos olhos: imensos pisos de concreto tornam o alcance visual extenso e impressionante, já que a maioria das divisórias é transparente. Um dos primeiros centros culturais do país, com bibliotecas, galerias, teatro, cinema, restaurante, ateliê e amplos espaços para ser e estar, tem uma programação que absorve parte da efervescência artística da cidade e também de forasteiros. É inevitável pensar que as quase quatro décadas do CCSP são uma referência para obras de espaços culturais no país.

Centro Cultural São Paulo, foto por Fernanda Cardozo.

Na pausa para um café, sentei na área externa da cafeteria, numa mesa ao lado do imponente jardim que atravessa o prédio, quebrando com cinquenta tons de verde o protagonismo de aço e concreto. Uma garoa típica roubou a cena do sol, anunciada por um barulho agudo, tão breve quanto ensurdecedor, vindo das árvores. Quando o garçom se aproximou para me atender, esclareceu diante da minha cara de espanto:  “são as cigarras, não te assusta. E elas não cobram couvert”. Meio desatento, fiquei tentando enxergar elas voarem, quando me dei conta de que estava confundindo cigarras com libélulas. Foi quando me veio a divagação a respeito das estações.

Antonio Meira no Centro Cultural São Paulo, em 2019.

Gosto de pensar que alguns discos do Nenhum foram gestados no outono e lançados na primavera. Afora a abstração artística que nos permite suspirar com as fases de plantação, safra e colheita, pode ser que determinados ciclos de inspiração se repitam mesmo, vai saber, como se fossem um ritual de época. Sei lá como o nosso pólen atraiu vários parceiros na construção deste álbum, o fato é que uma combinação de fatores favoreceu a aproximação de personagens importantes. A começar pelo maestro das produções independentes, Peninha Schmidt, desentocado da Teodoro Sampaio, onde abrigava seu selo Tinitus. E entre os colaboradores ilustres, Edgard Scandurra e Herbert Vianna nas parcerias autorais, e Flavio Venturini e Fito Paez nas participações especiais. Se com isto tínhamos grife, o repertório, por sua vez, garantia estilo e empolgação.

O âmbar-amarelo do projeto gráfico despertava calor também nas texturas do cenário, como se o símbolo do disco não pudesse ser outro que não o sol. Com tanto fogo e luz, tudo conspirou a favor de uma jornada com nome de filme nos primeiros meses de 1997:  “nunca esqueceremos daquele verão”.  A participação num festival itinerante no litoral paulista, também a segunda edição do Planeta Atlântida no litoral gaúcho, e um pouco depois um show na Praça Charles Miller em São Paulo, junto com J. Quest e Skank, tudo passava a impressão de estarmos na hora certa nos lugares certos. Mais precisa combinação ainda seria a nossa bem sucedida temporada na Sala Adoniran Barbosa, templo do rock paulista, espaço místico que faz jus à sua localização.

Anúncio do show do centro cultural no jornal Folha de São Paulo.

Poucos lugares de shows no Brasil tem tanto a ver com o rock quanto a Sala Adoniran Barbosa. A justa homenagem ao compositor que é cara de São Paulo batiza este espaço despojado do Centro Cultural.  A disposição da plateia favorece uma certa cumplicidade para a troca de energias. O público fica sentado nos degraus das duas arquibancadas que contornam os quatro lados do palco. Uma no piso térreo e outra no piso superior.  O campo de visão do artista é cercado de público por toda parte. O palco, em estilo arena, atrai como um para raio a visão de tudo e de todos, como se fosse um ringue, porém sem cordas. A percepção de que o público contorna o artista, proporciona um horizonte de intimidade difícil de se obter em outros formatos. Quem está na primeira fileira pode acessar ao estrado em dois passos, não mais do que trinta centímetros de altura.

Três shows lotados e uma sessão extra depois, o rastilho deixado pela temporada e também pelo disco foi o que os ases de gestão chamam de “turning point”. Mesmo que nos dez anos anteriores a banda tivesse passado pelos “templos sagrados” da capital paulista (AeroAnta, Dama Xoc e Projeto SP, entre outros). Esta temporada cativou definitivamente a formação de público por lá, como um momento de virada que realinhou os trilhos da trajetória da banda.

A famosa Sala Adoniran Barbosa. Foto de divulgação do Centro Cultural São Paulo.

As estações podem proporcionar novos ares e influenciar perspectivas, é verdade. Fica ainda mais romântico discorrer reflexões sobre de onde teria brotado esta energia incendiária do Mundo Diablo. Aquela cigarra barulhenta que fez seu show no jardim interno do Centro Cultural num breve instante, passou anos debaixo da terra se abrigando. Quando subiu à superfície, cumpriu sua inevitável missão reprodutiva, morrendo após depositar seus ovos estre as plantas. Mas, igual, estava provavelmente na hora certa, no lugar adequado. Aquele som que tanto me impressionou tinha a finalidade de atração e também de proteção. Cultivar inspiração e dedicação para colher ânimo e então engrenar continuidade não é receita fácil. Nem para as cigarras. O tempo nos permite dialogar com nossa condição finita diariamente, ainda mais quando os calendários de mesa ficam sempre ao alcance dos olhos. Aniversários fazem parte desta cronologia, lá se vão 25 anos deste disco. Tempo e espaço.  Esta temporada nos permitiu um raro sincronismo: você perceber que está na hora certa, no momento exato, no lugar ideal. Aquele outono tão planejado foi um arco-íris de felicidade incomum. E este é um componente essencial. Vai lá na tua discoteca e pega o disco Mundo Diablo. Olha a cara dos músicos na capa e na foto do encarte: eles estão sorrindo até hoje.

*Por Antonio Meira

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