Coordenação motora nunca foi o meu forte. Por isso a minha ideia de aprender a tocar bateria quando era adolescente desafiou a mais elementar das leis divinas: se algo tem chance de não dar certo, aí é que não vai dar mesmo. Nos anos setenta tinha uma escola de música chamada Palestrina em Porto Alegre. Eu subia a lomba da General Vitorino, no centro da cidade, tentando me lembrar dos exercícios numa borracha imitando o diâmetro de uma caixa de bateria, colada num pedestal de madeira. Lógico que não passei da quarta ou quinta aula. Com mais vontade do que talento, comprovei na prática que não sabia sapatear, assobiar, bater palma, mascar chiclete e recitar poesia ao mesmo tempo.
Mas essa tentativa serviu para que eu passasse a respeitar ainda mais meus bateristas prediletos. E as poucas bateristas que surgiam também. A começar pela meiga Karen Carpenter, que além de tocar super bem, cantava muito. A interpretação dela para “Close to You” de Burt Bacharach é hors concours. Pra mim isso já soava como um ápice: tocar bateria e ainda cantar. Quando vi o Serginho do Roupa Nova me caíram os butiás do bolso. E quando Peter Gabriel saiu do Genesis e Phil Collins assumiu os vocais, cheguei a levar um susto. E mais outro quando o demolidor Chester Thompson, assumiu a segunda bateria da banda.
Exemplos não faltam e a gente vai se acostumando com estes personagens disfarçados de metrônomos, que usam mãos e pés e por vezes a voz, e que são beneficiados por terem a visão de todos os ângulos do palco. Nos acostumamos tanto que não entendemos como estes músicos versáteis nos deixam de repente e se transformam em saudade. Desconfio que o lugar deles talvez não seja no céu, já que vida é ritmo e ritmo é permanência.
Foi uma comoção quando Charlie Watts faleceu em agosto. Por sua discrição, foi meu ídolo eterno. Sendo o baterista dos Rolling Stones, seria impensável não colecionar atributos, principalmente entre os próprios bateristas. Desprezando a fama ou a insistência dos holofotes, foi admirado pela precisão, estilo, pegada rítmica e swing.
Dos bateristas que recepcionaram Mr. Watts entre as nuvens, John Bonham e Keith Moon surpreenderam. Bonham, lendário baterista do Led Zeppelin cunhou uma mítica passagem pelo mundo da música com sua velocidade, potência e groove. Enquanto o brincalhão e impulsivo Keith Moon, com jeito e manias explosivas, não deixa de ter sido genial por sua espantosa criatividade, contribuindo para a aura mítica do The Who. E o que dizer de outro batera que nos vê lá de cima desde o ano passado, Neil Peart? Fez com o Rush uma história digna de performances inesquecíveis por sua agilidade, destreza e energia. Da linha de bateristas técnicos, como Carl Palmer.
E vou lembrando de muitos nomes, sem a pretensão de querer montar uma lista: Narada Michel Walden, Alan White, João Barone, Cozy Powell, Stewart Copeland, Simon Phillips, Barriemore Barlow, Bill Brufford e o “canhoto” Ian Pace, estão entre os que mais me impressionaram. E no quesito superação, impossível esquecer de Rick Allen, da banda inglesa Def Leppard, que perdeu seu braço esquerdo após um acidente de carro. Na bateria adaptada em que toca, as peças que seu braço tocariam são acionadas por seu pé esquerdo.
Quem inventou o dia dos bateristas, certamente tem suas razões pelo 20 de setembro, mas é preciso lembrar destes caras todos os dias. Aqueles que fizeram história “ditando o ritmo”. Sobretudo porque não existem facilidades na escolha da arte das baquetas. Enquanto outros músicos estão de pé no palco, o baterista está sentado e aparece menos. Enquanto poucos músicos usam os pés, os do baterista não descansam. Enquanto os outros estão na linha de frente e podem até circular pelo palco, o batera está sempre lá atrás, fixo, e provavelmente envolto por uma tapadeira de acrílico. Na hora de ir ou voltar de um ensaio, alguns instrumentos se levam nas mãos ou pendurados nos ombros. Mas você já viu um baterista caminhando com seu instrumento pra cima e pra baixo? Ser um reloginho, um metrônomo ambulante, é uma responsa e tanto pra quem será o porta-voz da precisão perante seus colegas de banda, músicos de palco ou de estúdio.
Naqueles anos setenta dos Carpenters, Porto Alegre tinha uma cena musical incipiente. Quando eu saía pela cidade atrás dos shows das bandas da época (Bizarro, Bixo da Seda, Saracura…) achava genial que o grupo Bobo da Corte tivesse uma baterista. A “Gata” (Maria Cristina Raimundo) foi uma precursora na época. Tocou também no Saracura. Sucedida por outro grande batera, Fernando Pezão.
Aliás, mesmo sabendo dos riscos de citar nomes, a gauchada que domina as baquetas formou um esquadrão interminável de drummers de primeira grandeza: Ricardo Arenhaldt, Bebeto Mohr, Paulo Arcari, Felipe Jotz, Fernando Paiva, César Audi, Mano Gomes, Duda Guedes, Luke Faro, Cláudio Mattos, Cláudio Calcanhoto, Edinho Espíndola, Pedro Petracco, Fabio Musklinho, Alexandre Barea, Rafael Heck, Kiko Freitas, Luígi Vieira, Edinho Galhardi, Prego, Marquinhos Fê, Gabriel Azambuja, Zé Darcy, Rodrigo Fischmann (outro que canta também), Alexandre Fonseca, Cau Hafner, Adal Fonseca, Paula Nozzari, Paulo James, Zé Montenegro, Rafa Bisogno, Taba, Castor Daudt, Jean Montelli, Lucas Giorgetta, Marcos Pecker e por aí vai. Nem vou me arriscar a tentar concluir o que poderia ser uma lista, pois falta uma penca de gente boa ainda.
Quase por último, mas não menos importante, destaco outra precursora, Biba Meira. Ao iniciar outubro o meu selo (Ímã Records) lança seu novo EP. Em “Microscópicos Ritmos de Uma Máquina de Escrever”, como o nome sugere, ela toca uma máquina de datilografia. É o segundo disco solo da notável locomotiva do DeFalla, que conta com participações especiais de um monte de músicos e musicistas bacanas em todas as faixas.
O que me faz lembrar também dos meus tempos de roadie da Biba, anos da decolagem do grupo DeFalla. Eu montava a Pearl Export dela quando não tinha ninguém para fazer esta mão. Nos idos dos anos oitenta os staffs das bandas ainda estavam se formando. Por vezes o jeito era fazer contorcionismo proativo e meter a mão em tudo ao mesmo tempo. Uma vez aconteceu de uma banda que ia fazer um show de abertura do DeFalla se atrasar. O que ocasionou que tocasse depois da atração principal. E como a bateria era a da Biba, eu tive que ficar esperando o show deles terminar para então desmontá-la e guardar tudo nos cases. Isto foi em 06 de fevereiro de 1987.
O músico que havia me ligado pedindo para que a banda dele abrisse o show, se tornaria também um dos tantos conhecidos bateristas gaúchos: Sady Homrich. Eu não tinha como adivinhar que em pouco mais de dois meses, eu também seria empresário da banda dele. E assim continuo trinta e cinco anos depois. Mas isto já é outra história.
Por Antonio Meira