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URSOS HÍBRIDOS, uma reação que virou disco

A história deste projeto começa em 2013, num dos tantos encontros frequentes com meus sobrinhos. Num deles, Lucas Sudbrack contou uma passagem curiosa sobre um trabalho que apresentara em São Paulo. Em evento de iniciação cientifica da ESPM, falou sobre interesses das superpotências no Ártico, citando novas rotas marítimas pelo norte, reservas de gás e petróleo, além de questões territoriais. E fez também uma menção ao impacto do aquecimento global naquela região, citando o surgimento de Ursos Híbridos. Ao terminar sua exposição, um dos colegas exclamou num misto de espanto e surpresa “…nossa, ursos híbridos ?!?” Rimos muito desta história e cada vez que nos encontrávamos, em qualquer situação de embaraço, independente do assunto, repetíamos o famoso bordão “…nossa, ursos híbridos!”.

Entre a leitura de muitos artigos sobre o assunto até chegar numa fotografia que correu o mundo em 2016, fiquei pontualmente interessado em como os impactos ambientais decorrentes de mudanças climáticas estavam emitindo sinais de alerta. Não só por conta do aquecimento global, mas também de outras interações danosas com o meio ambiente: destruição da camada de ozônio, descarte inadequado de lixo e resíduos, consumo exagerado de recursos naturais, aumento crescente das áreas urbanas, desmatamento, queimadas, acidificação e poluição dos oceanos, desperdício de água e por aí vai.

Antártica derrete em um dos dias mais quentes já registrados, em fevereiro de 2020. Crédito: Operational Land Imager (OLI).

O fato é que as mudanças climáticas induzidas pelo homem me pareceram uma realidade tão forte quanto a tal foto: a imagem de um caçador da região do ártico do Canadá que pensando ter matado um urso polar, viu que se tratava de um híbrido ao notar suas características. Mesmo que o animal tenha sido abatido legalmente, conforme programas que permitem caça para subsistência no território canadense de Nunavut, tudo me pareceu sem sentido. Existem somente oito espécies de ursos na terra. Os híbridos, por esta razão, são raríssimos. O urso já é impactado pelas condições de temperatura de seu meio ambiente, se desloca para outros territórios em busca de sobrevivência e tudo termina sob a alça de mira de um caçador? Percebi que aquela imagem me motivaria para alguma ação.

Enquanto o ártico experimenta efeitos do aquecimento do clima mais rápido do que se imagina, ursos pardos se movem em direção ao norte onde vivem os polares. Estes, por sua vez, estão ameaçados de extinção, pois ficam incapazes de se alimentar na ausência de grandes blocos de gelo. No ano passado, um urso polar foi encontrado perdido na região de Kamchatka, na Rússia, a centenas de quilômetros de seu habitat. Extenuado, desnutrido e procurando alimentação, foi resgatado, sedado e levado de helicóptero ao seu local de origem, comprovando que a espécie polar está sob risco.

Comercial da marca de refrigerante Coca-Cola mostra diferentes espécies de ursos reunidos. Crédito: Divulgação / Coca-Cola

Quem não se lembra de algum urso famoso em histórias infantis, lendas, filmes ou desenhos animados, sempre nos proporcionando simpáticos momentos de distração? No quarto das crianças, ursinhos de pelúcia sempre tiveram seu lugar garantido. Ursos polares viraram até estrelas de comerciais de refrigerantes: todo final de ano lá estão eles nas campanhas de natal. Curioso que esta marca de refrigerantes tenha até se utilizado de quatro espécies juntas numa das campanhas mais recentes, evocando “diversidade”. Por pouco, os pandas não estariam neste grupo: já não constam mais como espécies em extinção. Gol dos ambientalistas chineses que recriaram as florestas de bambu, numa demonstração clara de que restaurar o habitat natural é o caminho mais curto para manutenção das espécies.

Quando, lá por 2018, minha motivação para alguma ação virava um projeto, percebi que entre os nomes possíveis a opção se daria mesmo por Ursos Híbridos. A proximidade do animal com o imaginário humano seria um elo inclusive para o próprio conceito do projeto: um disco coletivo com músicos que hibridizariam não só as gravações, mas o processo de criação. A parceria virtual remetia a isto, um encontro improvável de “espécies de músicos”. A amarração me parecia suficiente para motivar diálogos de criação. Mas esta fase inicial não engrenou, não obtive um engajamento suficiente para moldar melhor a proposição e na correria sem fim da rotina de uma produtora perdi o timming e o projeto voltou pra gaveta.

Ursos polares sofrem com a diminuição do seu habitat natural. Crédito: Andreas Weith / Wikimedia Commons.

Mal sabia eu que em março de 2020 receberia o sinal que faltava para reconduzir o plano de novo ao grid de largada. Tinha lido uma matéria sobre o impacto do aquecimento no “teto do mundo”, já que as cordilheiras do Himalaia, vejam só, também estão derretendo. Assim como toneladas de lixo, alguns corpos de alpinistas estavam se revelando, mas também novos agentes patogênicos: vírus congelados sabe-se lá a quantos mil anos já foram recolhidos por cientistas no Tibete.

Examinando possíveis projetos para entrarem em execução durante a quarentena, não tive dúvidas, o que abordava o aquecimento global e a crise do clima foi o primeiro. A origem da pandemia que nos impactou é uma zoonose, infecção causada por vírus de origem animal. O círculo de razões para dar sentido ao projeto tinha se fechado. Se a desculpa para compartilhar arquivos musicais já estava garantida, agora havia outro componente ainda mais forte, a certeza de que as mudanças climáticas precisam de respostas em todas as instâncias possíveis. Que seja então também por um punhado de músicas que nos provoquem algumas reflexões e tragam um pouco de beleza e esperança.

Márcio Tubino, um dos músicos que topou o desafio, teve sua música gravada em cinco cidades de três países (Alemanha, Eslováquia e Brasil). Uma hibridizada perfeita como exemplo do projeto. Dedicou sua canção à grande Greta Thunberg, que do alto de seus de 17 anos impactou uma nova geração inteira a bradar por medidas urgentes dos governantes. Em setembro de 2019, apresentou uma queixa formal ao Comitê dos Direitos da Criança na ONU junto com outros jovens ativistas, pedindo que os países criem medidas para proteger as crianças dos efeitos da crise climática.

E eu dedico este disco aos meus sobrinhos Sudbrack, Lucas (hoje morando em Hong Kong), Bárbara (muito próxima de todos os ursos, pois mora em Vancouver, no Canadá) e Shana, que trabalha comigo pelo projeto, hibridizando seu talento também pelas causas ambientais. Por mais que a brincadeira tenha ficado cada vez mais séria (…nossa, ursos híbridos ?!?) e estejamos distantes.

Também, de maneira muito especial, dedico este disco ao músico e compositor canadense Julien Gauthier, que morreu após ser atacado por um urso pardo em uma área remota do Canadá. Ele estava em plena expedição para gravar sons da natureza para um projeto musical que misturava música e sons da natureza. Segundo seu colega Marc Feldman, Julien foi um dos raros músicos que assumiu a responsabilidade de preencher a lacuna entra a arte e a ciência. Ele se formou no Conservatório Nacional de Música e Dança de Paris e em 2015, como residência artística, passou cinco meses na Antártida. Esta experiência o levou à composição da Sinfonia Austral para a Orquestra Sinfônica da Bretanha e a um diário sonoro intitulado “Inaudita Simponia”, com gravações de campo (disponíveis no Spotify). Em sua derradeira viagem no ano passado, Julien iria de Fort Providence, descendo o rio Mackenzie, até Inuvik, próximo da divisa com o Alasca.

Julien Gauthier gravando sons do Ártico. Créditos: Julien Gauthier / Facebook

E, por fim, e mais importante que tudo, não poderia deixar de agradecer aos músicos que confiaram seu tempo e seu talento acreditando nesta causa e compartilharam esta bela trilha sonora conosco: Luciano Albo, Bibiana Petek, Jéf, Veco Marques, Atelier Tupi, Rodrigo Bianchini & Bohemian Folk Rock Band, Richard Powell, Márcio Tubino, Edu K, Estevão Camargo e Cee.

Também a todos que hibridizaram sua contribuição nas gravações: Thiago Heinrich, Nico Bueno, Elisa Inácio, Pedro Petracco, Rodrigo Ruivo, Dudu Zendron, Fábio Zendron, Elezer Fagundes, Ruan Mueller, Sara Zanella, Diego Zanini, Ciro Trindade, Christoph Holzhauser, João Luis Nogueira, Ricardo Fiúza, Fernando Pezão, Vicky Casanova, Humberto Saccol, Bruno Klein, Caio César. E a todos que participaram e se envolveram com o projeto: Giovane Silva, Leo Bracht, Vicente Veras, Leo Wetzel, Beto Soares, Isabel Vargas, Fernanda Cardozo, Shana Sudbrack, Ana Maria Meira, Cristine Rochol, Tiago Pinho, Andrea Sautereau, Mariana Canarin, Márcia Stival, Ana Paula Silveira, Beatriz Biasoto, Kayane Rocha, Luana Dourado e Ana Bia Patolli.

A música pode ser mensageira de esperança. Que este disco ilumine perspectivas de mudanças e as percepções a respeito da natureza e da preservação de nosso planeta.

Disco coletivo Ursos Híbridos está disponível nas principais plataformas digitais.

*Por Antônio Meira

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