Sempre que eu ouço aquela música eu choro porque lembro do meu falecido pai. É assim desde a primeira vez em 1996. Falo de “Lindo”, do músico Flávio Venturini, última faixa do disco “Beija-Flor”. E antes que você pense que esta reação é algo que decorre da letra, saiba que “Lindo” é um tema instrumental. Já fiz todos os testes possíveis, do gênero chegar em casa feliz, pensar que numa condição efusiva eu vou botar a música para tocar e nada vai me acontecer. Dois minutos depois (… a música dura uns cinco), lá estou eu quase cego e inchado de tantas lágrimas e lembrando do meu pai.
Já me peguei em plena manhã radiante de um domingo de outono, sozinho, preparado e consciente de que se tocasse a música novamente, nada iria me sensibilizar. Crio coragem, respiro fundo, me aproximo do tocador, ponho a “Lindo” e não dá outra, fico lambuzado de tanto chorar, porque eu lembro dele, eu gostaria de dizer algumas palavras para ele e agora não adianta mais. Não tem mais volta. Como se deu isto, só a mais espiral coincidência divina ou um relâmpago emocional para explicar. Vou ouvindo e ficam se sucedendo flashes de imagens repentinas, edições assimétricas e sempre diferentes, sobre as quais já desisti de ter controle, e nem adiantaria, pois achando que não vou me emocionar, tudo o que acontece é exatamente o oposto a isto, sempre tão forte, tão pungente e fico me perguntando, como é que pode?
Pode porque a música não diz nada. E por não dizer nada, diz exatamente tudo. Porque suscita palavras que não foram ditas, emoldura uma melodia entrecortada pela voz e o piano como uma chama acesa de uma pequena vela. O melhor é mesmo saber que para a beleza e a candura de “Lindo” sempre vou precisar de algumas porções extras de lenços.
Lembro que uns vinte anos antes disto, em 74, com a música “The Great Gig in The Sky” do álbum “The Dark Side of The Moon” do Pink Floyd, também tive uma reação de perplexidade emocional diante da música. De um impacto tão devastador que imediatamente ao término da audição fui correndo para uma janela tomar ar. Nem imaginava a surpresa de uma voz feminina, nem sequer de onde tinha saído a Claire Torry.
Anos depois li que os integrantes do Pink Floyd pediram para ela pensar em “morte e terror” ao improvisar durante a gravação no estúdio, e que o produtor Alan Parsons gravou duas sessões e editou. Selou o melhor alcance de sua interpretação, impactando ainda mais o resultado daquele raro instante. Quando a voz assume a condição de um instrumento, curiosamente, não derruba a definição de música instrumental. Ao contrário, enaltece sua sofisticação emocional como instrumento.
Não só nestas duas músicas mas também em uma outra mais extensa em duração, a voz cumpre também a função de instrumento. Mais curioso ainda para um ano tão emblemático, “1974” batiza a faixa instrumental da banda O Terço em seu álbum “Criaturas da Noite”: a música de 14 minutos que eu mais ouvi em toda minha vida.
Diante da folha em branco de uma letra que não existe, me pergunto como músicas sem palavras conseguem nos deixar tão reféns de sentimentos resignadamente avassaladores? Será que existe beleza na dor? Que a música aplaca alguma espécie de medo? Qual o sentido em uma letra que não existe, mas numa vocalização que está ali, no lugar das palavras ausentes? Que texto é este tão retumbante da música sem palavras?
Estas conexões com passagens tão importantes da nossa vida, me fazem pensar que nós nos transformamos em jardineiros da música. Plantamos, colhemos, regamos, como quem rege expectativas conforme as estações, as oscilações de nosso estado emocional, nosso humor, e vamos mergulhando em sentimentos e lembranças na maioria das vezes associados a alguma música. Os estímulos que sempre confortam o espírito e o coração, encontram na música uma porta onde se lê “dopamina”. Recompensas neurológicas que recebemos pelos sentimentos despertados.
Lembra daquele buque de flores entre as suas mãos, escondido atrás de seu peito? Ou daquele desenho como se fosse uma dedicatória que alguém nunca mais esqueceu? Então, o gesto e a escolha das imagens não precisou do conforto das palavras. A voz humana entre estas músicas, disfarçada de instrumento ou nem tanto, presente e viva como um personagem invisível, nos estende a mão para um acolhimento desmedido e nos abraça. Estes abraços eu não esqueci nunca mais. Posso senti-los a cada momento que eu escuto estas músicas, entendendo perfeitamente cada palavra que a música instrumental não diz. Até porque nunca me disse uma única palavra.
*Por Antonio Meira