No final de 2019, onde mesmo nós estávamos? Quando, em março de 2020, surgiu a pandemia e a consequente paralização do mercado de shows e outras manifestações artísticas (teatro, dança, circo, artes visuais, etc…), poucos imaginavam um impacto de tão longa duração. O descompasso da gestão na área da saúde no país colaborou para a extensão dos danos e a crise sanitária migrou para contornos dramáticos.
Esta longa pausa involuntária proporcionou reflexões de ordem existencial para os artistas. Se em modo ativo normal, a carreira já é impactada diariamente por uma série de variáveis e desafios, a grande maioria pouco controlável, então como administrar uma interrupção? Se uma espécie de inquietação sempre existiu, como então administrar carreira? Mas e se a carreira não der certo? E se o artista desiste durante o caminho? E se o músico descobre que não é artista? Mas e se o artista descobre que não é músico? E quanto tempo demora esta trajetória? E quanto tempo temos para ficar fazendo perguntas até que cheguem as respostas?
Uma questão de densidade artística
No ambiente artístico, quem lança mão de todas as certezas e caminha no vão destas imprecisões, sabe que o itinerário vai impor escolhas. Só encontra respostas quem aprende a perguntar. Minha experiência neste tema parte de um conceito moldado na argila destas ambiguidades: “densidade artística”. Uma espécie de bula interna da produtora, longe de ser uma fórmula de propriedades físicas ou químicas. Imagine um gráfico onde dois vetores expressam traçados diferentes, mas de mesma intensidade e importância: uma linha vertical é a da “exposição” (mostra, visibilidade, shows) e outra, horizontal, é a da “obra” (veiculação, renovação, permanência). Numa terceira linha, “diagonal”, está o resultado por onde o artista se move: o “espaço” de suas respostas na gravitação em busca de audiência, da criação, registro e difusão de sua obra, de sua sustentação e equilíbrio diante da areia movediça chamada mercado. Em suma, de sua consistência.
Cada dia a vida artística tem desafios renovados. Uma certeza matutina pode ser desafiada pela inconstância de uma longa noite mal dormida. Um enunciado pretensamente definitivo, pode não durar até a primeira insônia, em meio a luz disforme da madrugada. A vida artística tem princípios que até o mais excêntrico estrategista reconhece. Nesta dinâmica, a única coisa que não muda é a obra. Perene e intocável, lá está ela, dia após dia serena em seu próprio tempo. E até se permite pertencer a todos depois de um longo prazo, virando “domínio público”.
As equações da carreira dizem respeito ao artista que irá representar a “obra” no palco. Podendo ser o autor dela ou não, pois neste baralho as cartas são várias: intérprete, cantautor (quem canta suas próprias composições), solista, dúos, banda ou orquestra. Na subdivisão desta tipificação, aparecem então os segmentos de atuação. Independente disto, o ponto de partida é um longo e indefectível processo em busca de formação de público. E que requer cuidados: a busca desenfreada pela fama pode distorcer alguns objetivos básicos. O mundo do showbusiness tem tantas mentiras baseadas em fatos reais que é muito fácil sucumbir a tentações supérfluas.
Por isto a densidade artística nos exige preparo: o propósito que começa na criação de uma música, passa por sua gravação, pela performance da sua execução no palco e pelas respostas diante da manutenção de todo um processo fora dele. Pois a constância deste ciclo tem que respeitar dimensões incessantes de tempo: por vezes tão urgente que nem percebemos, e em outras ocasiões tão alongado e despreocupado que nos reenquadra no modo correria e aflição novamente.
Serão todos aspirantes a alguns momentos de glória, frenéticos na busca de sucesso? Passageiros para o mundo radiante das celebridades? Ou para alguns serve apenas e tão somente o prazer de uma carreira bem-sucedida? Este é um assunto complexo e apaixonante para qualquer tentativa de resumo. Um único parágrafo levaria dias, quem sabe meses, quem seria capaz de contar quantos anos de dedicação? Artista não pode sucumbir às imobilidades e ao distanciamento social. Precisa justamente fazer deste contorno impeditivo não o final de uma história, mas o começo de outra. Vacinado pelas dificuldades frequentes – imunizado contra os mais diversos sobressaltos – não pode ser um artista terminal e sim uma estação de continuidade.
Voltando sob os olhos do tempo ao longo do ano de 2019, é prudente rever o histórico das ambições, dos sonhos e os projetos em trânsito que todos cultivavam. Antes da trombada com a pandemia, quero dizer. Pois se todos estão parados agora, se é que estão, é preciso analisar que espécie de futuro cada um havia escolhido. A carreira (re)começa quando a gente acorda, é um eterno despertar para nossos compromissos e prioridades. Mesmo que você olhe no retrovisor agora e descubra que talvez tomasse outras decisões a respeito da sua vida artística (..sim, anteriores à pandemia).
Como bem disse Cazuza, “você está vivo, este é o seu espetáculo. Só quem se mostra se encontra. Por mais que se perca no caminho”.
Por Antonio Meira
2 Responses
Hora de tramar outras boas histórias nesta vida, Tonho! E a música ainda é uma bela escolha… vamos pensar no como?
Que bonito, Tonho! Fico contente quando vejo alguém se perguntar e ousar produzir sobre terrenos tão incertos. Parabéns, orgulho de andar contigo.