Quase. Este advérbio insuspeito encobre medidas voláteis mais do que pessoais no conturbado mundo do show business. Será que só quem chegou lá sabe o que é ter quase chegado lá? Quase lá não é no próprio lugar e sim em algum ponto antes, supondo que de fato alguém tenha chegado (lá).
Quantos artistas quase obtiveram êxito na carreira e depois estacionaram no esquecimento? Quase fizeram sucesso, quase emplacaram uma bela trajetória ou quase acertaram no alvo com um baita hit? O cemitério de carreiras tem dividendos permanentes com a causa irremediável do “foi por pouco”. Lembra daquela banda que você jurava que não era do tipo “one-hit wonder”? Foi por um triz que não vingou, mas ficou praticamente marcada por aquele único sucesso.
Desde a época do gramofone a indústria da música já trocou várias vezes de munição. Recentemente seu poder ficou enfraquecido pela transformação digital. Igual, no primeiro ou no segundo caso, raramente o poder está nas mãos dos artistas. Ou quase nunca. E não me venham com Spotifylosofias. Em que download mesmo a gente perdeu as certezas deste embaraçado tabuleiro artístico? Será que é mesmo preciso fazer sucesso para se manter (vivo) ou existem outras métricas para que a gente possa olhar no retrovisor e perceber que já avançou muito? E precisa fazer sucesso ou ser bem-sucedido seria o suficiente?
É quase um jargão popular perguntar sobre um artista sumido com a despretensiosa indagação “… que fim levou o Zé das Hortênsias?”. Somos impermanentes tratando artistas como eminências diante de nossas expectativas. Mas do alto de nossas projeções ocasionais, quando lembramos de algum por seu raro talento, nos pegamos pensando, que fim levou? Que fim levou a banda “Que Fim Levou Robin?”. Nossa memória artística é complexa. Não desconfio da música, pois ela fica. Nós é que temos que dasatar alguns nós e compreender melhor esta dinâmica dos sumiços. Pois, vá que desaparecimentos ocasionais se tratem de estratégias. Ou da boa vontade do alinhamento de alguns planetas.
Voltando ao nosso advérbio, você deve ter o seu artista sumido de estimação, talvez. Seu desconhecido predileto sempre por perto. Pensando nisso estes dias lembrei do Beijo AA Força, uma banda de Curitiba. A movida do rock em Curitiba tinha voo permanente garantido pelas ondas da Rádio Estação Primeira, surgida em 86 pelas mãos do visionário Helinho Pimentel. Uma geração que além do BAAF tinha Ídolos de Matinê, Bons Garotos Vão Para o Inferno e Opinião Pública. Muito antes de todas, a banda Blindagem. E um pouco depois delas, na virada dos noventa, a Relespública, ambas ativas até hoje.
Pois bem, no primeiro show “solo” do DeFalla por lá em 87 no Porão (subsolo do lendário Hermes Bar), tivemos na recepção de Rodrigo Barros Homem Del Reis as honras da casa por parte dos roqueiros locais. Desdobramento da calorosa recepção já no ano anterior, quando o trio original do DeFalla dividiu o palco de um teatro com o Beijo. Rodrigo era o frontman e motor da banda Beijo AA Força. Quando eu li o nome da banda com aquelas duas vogais coladas em caixa alta só para debochar da crase, pensei, que sacada genial. No final das contas, soube depois, não era nem por causa das pilhas AA, tampouco por conta da expressão “juros ao ano” e muito menos de um instrumento de tortura que imitava um alicate (dizem que os nazistas usavam na língua de prisioneiros poloneses). Era uma resposta aos desavisados pela regra ortográfica. De tanto os veículos de comunicação não colocarem crase na expressão beijo à força no final do nome original do grupo (Companhia Elétrica Beijo à Força), eles optaram pela redução e se vingaram repetindo em maiúscula as duas vogais.
Roqueiros forasteiros de primeira viagem em Curitiba eram convidados pelo Rodrigo e sua troupe a experimentar o famoso “esfria saco”. Era uma espécie de montanha russa numa lomba hiper íngreme no bairro das Mercês, numa descida quase tão vertical quanto a subida. Você só descobre que desceu quando se dá conta de que já está subindo. Não lembro de quem era o Opalão amarelo, mas só de ver o carro descer a 100 por hora e logo em seguida subir de novo tão rápido quanto, era de dobrar o estômago. Bandas que passavam por Curitiba na época eram invariavelmente saudadas por esta experiência de mergulhar na lomba asfaltada das Mercês. Até que uma vez aplicaram a submersão a jato no grupo paulista Fellini, aquele do “Rock Europeu”, quando o Opalão saiu da pista e foi parar dentro do gramado de uma casa. Após este incidente resolveram arquitetar outras experiências do gênero “trote na calourada roqueira” e a prefeitura da cidade, por sua vez, colocou dois imensos quebra-molas na “pista” que estão lá até hoje. Memórias da época em que bandas ensaiavam em garagens.
Curioso que a cena roqueira de Curitiba do final dos oitenta, mesmo com a Estação Primeira a tiracolo não tivesse muito reconhecimento no centro do país. Rodrigo reverbera interessante reflexão sobre isto: “o eixo nunca quis muito papo com a gente, tínhamos uma relação de amor e ódio. O BAAF sempre foi considerado pop demais pelos punks e punk demais pelos pops. Bem feito pra gente, não fomos espertos o bastante para enganar as duas turmas”.
As letras das canções do Beijo AA Força eram assinadas por poetas e letristas como Paulo Leminski, Marcos Prado, Roberto Prado, Thadeu Wojciechowski e Sérgio Viralobos. Juram que isto sempre foi meio bagunçado: “as vezes recebíamos letras prontas dos poetas, mas com passar do tempo na maioria das vezes passamos a fazer tudo junto e os poetas também participavam das melodias. Por isso nossas músicas sempre têm muitos parceiros.”
O Beijo veio no cometa do boom do rock brasileiro em 83. Com 25 anos de carreira resolveram se dissolver. Penduraram as chuteiras em um show ao vivo em 2007, lançando um CD e DVD: “não é golpe de marketing, vamos acabar com o Beijo e queremos acabar com o pé direito”. Rodrigo vai mais longe em meio a um ato de contrição: “cosas del bandoneon… fiz música como achei que ela deveria ser e como tínhamos a sorte de fazê-la soar. Somos uma turma de compositores. Antes mesmo de gravar um LP já tínhamos passado por 4 ou 5 repertórios inteiros. Sou muito personalista com a música e isto deve ter atrapalhado um pouco as coisas”.
Antes de jogarem a toalha, estavam com quatro discos e uma série de trilhas para teatro e cinema, com um punhado de temas instrumentais superbacanas. No show de despedida o jornal Gazeta do Povo não deixou por menos: “banda morre e finda uma época musical no Paraná, vinte e cinco anos depois de seu surgimento revolucionário no cenário musical”.
O modo desativar carreira, neste caso, foi proposital. Desistindo, você mesmo desliga os aparelhos, longe do clássico e dramático “no auge da exposição sumimos da mídia”.
Volta e meio ainda assobio uma das minhas músicas prediletas deles, a que tem refrão em francês, “Temps en Temps”. E ainda recordo de uma passagem definitiva da letra de Marcos Prado em “O Dono da Farra” (Meu coração é só uma bomba de sangue, mas como todo motor um dia entra em pane. Mesmo a paixão um dia se recusa e como em todo o amor, um dia o sangue suja. Meu coração não funciona direito, mas como todo bom ator, ventríloquo que fala de amor dubla a batida do peito. Estúpida máquina falsária! Pode ser a dona da farra, mas seja como for, um dia o pulso para).
Sempre achei que faltou um pouco mais de reconhecimento a eles. Uma exatidão bem definida desta importância. Até por isto decidi me socorrer de parte de um texto do antropólogo, roteirista e pesquisador musical, Hermano Vianna, publicado em sua coluna no Segundo Caderno do jornal O Globo em 2013: “Então me toquei que deveríamos estar comemorando os 30 anos da criação da Beijo AA Força, banda que entortou nossos pés pela primeira vez em 1983. Para resumir sua história com apenas um lançamento: “Sem suingue”, de 1995, só não ocupa os primeiros lugares nas listas dos melhores discos de todos os tempos da música popular brasileira por causa desse distanciamento torto que o resto do país mantém com a produção cultural de Curitiba, praticamente ignorada fora do Paraná (Leminski ou Trevisan são casos bem excepcionais). Preciso deixar bem claro (a nova audição reconfirmou esta impressão antiga): “Sem suingue” não deixa nada a dever se comparado com “Acabou Chorare” ou com “Samba Esquema Novo”. Na minha humilde opinião leva até vantagens, pois reflete bem minha experiência de geração e meus interesses diante do mundo pop atual. Isso só parece exagero porque quase ninguém ouviu a obra prima curitibana. Quem escutar agora vai pensar que é gravação nova, de tão atual e original.”
Concordamos em tudo e em especial no “quase ninguém ouviu”. Eu já estava me dirigindo para a porta de saída deste post, dizendo que ele se autodestruiria em 10 segundos, quando me dei conta de que o meu chá de sumiço estava esfriando. Ou quase.
*Por Antonio Meira