Devia ter oito ou nove anos, era final da década de sessenta. Convidado por um colega de escola, fui jogar bola com a família dele e amigos num campinho de um bairro da zona sul de Porto Alegre. Sentado no banco detrás de um flamante Gordini quatro portas, fiquei com o rosto colado na janela. Não lembro de ter ido antes na Vila Assunção. Quando abri a porta do carro e desci, senti um cheirinho de lenha queimada, como se a beleza do bairro precisasse do olfato para impressionar. A pelada era na pracinha Franklin Perez, defronte a avenida principal do bairro, a Pereira Passos.
No final dos anos setenta, já cabeludo e roqueiro (não necessariamente nesta ordem), fui visitar um amigo cujo endereço era justamente numa das tantas ruas da Assunção com nomes de índios tupi-guaranis. Na Cariri, morava Marcelo Nadruz, tecladista, compositor e umas das cabeças pensantes de uma banda chamada Raiz de Pedra.
Nos conhecemos em janeiro de 78, em Imbé, praia do litoral gaúcho, quando eu saia do mar após ter me machucado com minha prancha, num caldo de primeira grandeza. Cortei a perna na altura da coxa, doeu horrores, remei em direção a praia e um pouco adiante me deparei com o Marcelo na minha frente. Foi o diálogo mais curto e rápido que tive com ele até hoje. Quando me avistou perguntou… “e aí, cara, como estão as ondas?”. Mal consegui balbuciar “me ajuda!” e mostrei o ferimento na perna. Ele saiu da água zunindo, chamou amigos, me tiraram do mar, a prancha serviu de maca e me colocaram no banco detrás de um Opalão rumo ao hospital.
Semanas depois fui retribuir pessoalmente esta operação de socorro num camping ao lado de um hotel. Foi aí que entre audições de rock progressivo português, jazz-rock, fusion e outras sonoridades mais exóticas, se revelou uma grande afinidade musical. E como a gente diz, as portas de longas amizades se abriram.
Mas voltando a rua Cariri: atravessando parte do bairro a pé para ir na residência da família Audi, na rua Paraguá, uma coincidência me surpreendeu. A casa onde íamos ficava defronte a tal pracinha onde eu estivera uns dez anos antes. Desta vez eu ia assistir pela primeira vez ao ensaio da banda do Marcelo, o Raiz de Pedra. Na garagem dos Audi, fiquei ouvindo atentamente o que Ciro Trindade, Márcio Tubino, César Audi, Pedro Tagliani e Aníbal Carneiro experimentavam entre arranjos, acabamento e dinâmica para as músicas. E também as considerações teóricas do Paulo Audi, irmão gêmeo do César, arquitetando sonhos e planos para o futuro do grupo. Eles ensaiavam para a primeira temporada da banda em teatro. Era a década de oitenta iniciando, o show se chamava “Ardepedziar” (raiz de pedra ao contrário), com produção do próprio Paulo. Em 82, eles apresentariam outro show em teatro, “Prelúdio”, e então eu já estava meio que promovido a entourage de trabalho e dedicação raiziana.
Os vizinhos da Assunção não aguentaram muito o barulho dos ensaios e a banda trocou de garagem. Foram de mala, cuia e instrumentos para uma rua do bairro Santo Antônio, a Voltaire Pires, onde morava a família Tubino. Eu ia pra lá num ônibus Caldre Fião, sentava sempre no fundo e por vezes tapava os ouvidos. A cada rua com asfalto irregular o barulho era ensurdecedor, bancos e janelas sacudiam, tudo batia e tremia ao mesmo tempo. Descendo na parada diante da casa do Márcio, a sensação de alívio compensava.
Nada como um ensaio numa garagem para limpar os ouvidos. Sempre aos sábados, naquelas tardes na rua Votaire, uma banda ensaiava enquanto um bando assistia mas não perdia tempo. Caloca, Riegert, Eclair, Toni e Paulo Audi foram o primeiro capítulo da formação de uma banda que não subia no palco, mas que trabalhava antes, durante e depois de um show. A raiz da importância da entourage para a carreira de um artista estava selada. Obcecado por desenhos de gestão, logo compreendi que o resultado de um show no palco era uma confluência de várias linguagens artísticas.
Mas voltando a Assunção de novo, desta vez no final do anos 90, lá estava eu me instalando numa residência do bairro, em plena Pereira Passos, a avenida da tal pracinha do campinho aquele. Morando na parte detrás da casa, com a produtora instalada na frente. Um longo cordão umbilical me reconectava com percepções marcantes, em meio ao mesmo cheirinho de lenha. Volta e meia eu relembrava das primeiras produções com o Raiz. No coração da gente, a música instrumental entra e não sai nuca mais. Ainda estou com o rosto colado na janela.
*Por Antônio Meira