fogueira 6

Enquanto o mundo acabava eu ouvia o melhor disco do ano

Sentamos na beira da praia, ajeitei a canga com cuidado, tirei da mochila meu tocador Harman e pensei: num luau de noite estrelada quase sem vento, música para ouvir em volta da fogueira tem que ser algo do gênero “disco do ano”. Uma leve brisa gelada se insinuou vindo do sul como quem assopra uma sugestão. Eventualmente minúsculos pontos de luz apareciam, como se pequenos fachos medissem distâncias para interromper a escuridão. Em condições ideais de temperatura e pressão, uma boa sequencia de canções faria bem ao coração. Quando estamos de pés descalços na areia tudo converge para violão e voz. Piano e voz talvez, mas uma boa porção de letras se revelava a pedida fundamental.

Percebi que se o mundo não havia mesmo acabado em 2020, então era hora de escutar mais uma vez “Canciones de Amor para El Fin del Mundo”, último disco do cantautor uruguaio Franny Glass. Gosto muito disto nele: a habilidade dos nomes interessantes em cada um de seus álbuns, no itinerário de sete discos em treze anos. Casualmente a faixa de abertura se chama “Las Luces”, como se as faíscas do fogo precisassem das explicações de um cancionista (”Las luces allá en la distancia, el campo que muere y florece, las cosas en el espejo más cerca de lo que parece”). Em meio a tantas incertezas recentes sobre que futuro nos espera, algumas canções tem o dom de serem o porto mais seguro no momento de ancorarmos nossa busca por serenidade.

Cantautor uruguaio Franny Glass

Quase hipnotizado pela sucessão certeira e empolgante das músicas, imaginei como seria abrir a capa de um vinil deste disco. Como seria a sua arte, a disposição das letras, os créditos da grande quantidade de músicos que esteve com ele no estúdio (muitos solitários por imposição da quarentena) e me dou conta de que este hábito jurássico é um ritual cada vez mais distante. Pouco importa se eu pensasse em abrir uma caixinha digipack de CD e visse tudo num recorte bem menor. Quem ouve e gosta quer saber mais. Quer tocar no que está ouvindo como se pudesse folhear “a obra”, mesmo não sendo um livro. Virar e desvirar a capa e a contracapa várias vezes, tirar o encarte, abri-lo, fechá-lo, e daqui a pouco, fingindo consultar de quem é mesmo a voz feminina que divide com Franny a faixa “Juntos”, um hino por sinal (… “Si hay que elegir de qué lado estar, en ningún lado nos van a encontrar. Si hay que elegir de qué lado estar, me voy a quedar a tu lado). Mas isto certamente estará entre os desejos possíveis de 2021.

Para confortar a ideia de que algumas frases pudessem ser recortadas por sua distinção, memorizo algumas construções, sabendo que cada um dos títulos são pistas sobre as imagens possíveis de se apegar. É assim com a vontade de dançar junto na “Bailar Lentas” ou de pegar o túnel do tempo de volta aos anos sessenta em “Tu Nombre Tatuado”. Ou da cálida confissão em “La Mejor Parte” (…”partir para quedarte con la mejor parte, decir amor lo dice todo el mundo, es invisible y suena tan profundo. Lo que se hace no se explica, lo que se rompe se multiplica”). Não por acaso a música que encerra o disco é “Hablamos del Tiempo” (“ Hablamos del tempo, hablar por hablar, así pasa el tempo, lo vemos pasar. Mejor que el silencio, mejor que pensar en tiempos passados que ya pasarán. Te extraño a veces si escucho un rumor, quizá te perdiste o tal vez fui yo. Te quise hace tempo pero era otro amor. Te extraño a veces y otras veces no. Extraño es el tempo en nuestro lugar, tal vez los caminos
se van a cruzar”).

Foi uma rara audição comemorada, daquelas em que vibramos junto com o que ouvimos. Olhando para o firmamento, uma das primeiras noites do ano trouxe esta sensação, como uma bússsola apontando para a cintilação. Eu mal sabia que a trilha sonora do fim do mundo seria tão bonita.

*Por Antonio Meira

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